Para começar as postagens do blog, sugiro a leitura da reportagem de Eliane Brum, da revista Época, para refletirmos que pais somos:
Eliane Brum,reporter Revista Época"Na semana passada, um amigo me enviou um email com o anúncio de um personal organizer. Ele sugeria que eu contratasse um desses “profissionais” para arrumar a minha mesa. Era uma sacanagem, claro. Eu detenho o título de autora da mesa mais bagunçada da Época desde que entrei na equipe da revista, em janeiro de 2000. Nesse quesito, sou imbatível. Na minha mesa, é possível encontrar, convivendo ecumenicamente lado a lado (ou um em cima do outro), um saco de salgadinhos, uma imagem de São Francisco de Assis, uma lagosta de borracha e um dicionário de sinônimos. Isso em apenas um cantinho. Às vezes preciso escrever com os cotovelos grudados no corpo, porque não tenho outro lugar para apoiá-los. Embora venha cogitando ter uma mesa organizada há umas duas décadas, na minha bagunça pessoal eu acho tudo e não perco nada – ou quase nada. É o meu jeito.
Mas há algo bem interessante na brincadeira do meu amigo. A multiplicação de termos como personal e coach diz muito sobre a época em que vivemos. E sobre os adultos que nos tornamos.
O conceito de infância, como o conhecemos, se consolidou no Ocidente a partir do século XVIII. Até o século XVI, pelo menos, assim que fossem desmamadas e conseguissem se virar sem as mães ou as amas, as crianças eram integradas ao mundo dos adultos. E, como tal, eram responsáveis pelas consequências de seus atos. A infância, como idade da brincadeira e da formação escolar, ao mesmo tempo com direito à proteção dos pais e depois à do Estado, é algo relativamente novo.
Nem sempre as crianças significaram a promessa para o futuro tanto de uma família como de uma nação. A infância não é um conceito natural ou determinado apenas pela biologia. Como tudo, é também ou principalmente uma invenção cultural, um fenômeno histórico implicado nas transformações econômicas e sociais do mundo dos humanos, em permanente mudança e construção.
Me parece que hoje há algo novo nesse cenário. A partir do século XXI, vivemos a era dos adultos infantilizados. Uma espécie de infância permanente do indivíduo. Não é por acaso que os coaches proliferam. Coach, em inglês, significa treinador. Originalmente, treinador de times e de esportistas. Mas que foi ampliada para treinador de tudo, inclusive de como viver: os life coaches. Personal trainers têm função semelhante. Treinar alguém para se exercitar, comer, se vestir, namorar, conseguir amigos e emprego, lidar com conflitos matrimoniais e profissionais, arrumar as finanças e também organizar os armários e a mesa de trabalho, como na sugestão do meu amigo.
Nesses conceitos importados dos Estados Unidos, o país que transformou a infância numa bilionária indústria cultural e de consumo, a ideia é a de que, embora estejamos no que se convencionou chamar de idade adulta, não sabemos lidar com nenhum aspecto da vida sozinhos. Coaches e personal trainers podem ser eufemismos para uma função muito parecida com a da babá. Crescemos, terminamos a escola, constituímos família ou não, vamos para o mercado de trabalho, mas precisamos de alguém que arrume nossa mesa e nossa casa, nos ensine a comer direito, nos diga como namorar e conseguir amigos, nos treine para impressionar o chefe e conquistar uma promoção. Nos ensine, em programas diários, semanais, mensais e anuais, como num planejamento das metas de uma empresa, a viver, como no caso dos life coaches.
Ao nos reduzirmos a adultos que precisam de babás por total incapacidade de lidar com qualquer aspecto da vida, do sentimental ao profissional, a que renunciamos? A muito. Mas o principal é que renunciamos à responsabilidade. A construção contemporânea de infância está fundamentada no conceito de que, tanto no estatuto social quanto no jurídico, crianças são seres com direito à proteção e à educação – mas sem responsabilidade pelos seus atos. Crescer, tornar-se adulto, é justamente passar a responsabilizar-se pelos seus atos. Mas, no caso das novas gerações de 20, 30, 40 anos, se isso ainda vale para o estatuto jurídico, parece perder força no estatuto social.
Os adultos desse início de milênio parecem prolongar a infância no sentido da não-responsabilização. São sinais, aqui e ali, de uma transformação na forma de ver a si mesmo – e de ser visto. É corriqueiro testemunhar, seja no bar ou na empresa, gente que fica muito surpresa porque seus atos motivaram uma reação indesejável, uma conseqüência pela qual precisam responder. Nesse momento, vemos adultos com cara de surpresa, olhos arregalados como os de uma criança. Parecem pensar: “Mas por que eu, que sou tão bacana, tão inteligente, tão cool?”. Quando podem, chamam os pais, os advogados.... os coaches para salvá-los. A expectativa, como um direito adquirido, é a de que sempre serão “perdoados”.
Da mesma maneira, encarnam a geração do “eu mereço”. Se não há responsabilidade pelos seus atos, também não há responsabilidade pelas suas conquistas. Está cada vez mais diluída a ideia de trabalhar por aquilo que se quer com a consciência de que custa tempo, esforço, dedicação. Escolhas e também perdas, frustrações. Alcançar sonhos, ideais ou mesmo objetivos parece ser compreendido como uma consequência natural do próprio existir, de preferência imediata. É uma espécie de visão contemporânea da ideia mística de destino, de predestinação. Ou apenas uma questão de usar a estratégia certa. E, para nos ensinar a traçá-la, buscamos um business coach.
O “eu mereço” vem a priori. “Eu mereço porque eu sou eu”. Ou: “Eu existo, logo mereço”. O fazer por merecer foi eliminado da equação. Quando essa crença, tão fundamentalista quanto os preceitos de algumas religiões, fracassa, aí é hora de buscar o happiness coach (treinador de felicidade), o dating coach (treinador de relacionamentos amorosos), o health coach (treinador de saúde), o conflict coach (treinador de conflitos matrimoniais e profissionais), o diet coach (treinador de alimentação saudável). O life coach. É estarrecedor verificar como as gerações que estão aí – e as que estão vindo – parecem não perceber que a vida é dura e dá trabalho conquistar o que se deseja. E, mesmo que se esforcem muito, haverá sempre o que não foi possível alcançar.
Muito se tem falado e escrito sobre a falta de limites das crianças de hoje. E aqui o “de hoje” faz realmente sentido. A partir da constatação de que as crianças não param quietas um minuto, em lugar nenhum, a psiquiatria criou síndromes no mínimo curiosas. A indústria dos medicamentos estimulou a disseminação de drogas no mínimo questionáveis. Foram tecidas teses de todo o tipo, algumas delas bem estapafúrdias. Ou no mínimo curiosas.
Afinal, os professores choram em sala de aula pela prepotência dos alunos. E ninguém mais aguenta crianças berrando nos restaurantes, falando nos cinemas, atropelando nos corredores. Eu, que sou bem pouco tolerante não só com crianças mal-educadas, mas com gente mal-educada, em geral reclamo. Os pequenos e rosados pimpolhos costumam me olhar com os olhos estalados: “Mas eu sou tão fofo! Por que você não gosta de mim?”. E as mães, indignadas por eu não me render ao encanto de seus rebentos, também me olham ofendidas: “Mas ele é tão fofo! Todo mundo gosta dele. Você deve ter algum problema!”. E lá vem a ofensa predileta para atingir uma mulher: “Sua mal-amada!”.
Para além das boas hipóteses das muitas teses e debates sobre o fenômeno da infância insuportável, me parece que vale a pena pensar sobre quem são os pais dessas crianças. Se os pais são adultos infantilizados, que não conseguem se responsabilizar pelas suas vidas – e muitos nem acham que precisam... –, como esperar que suas crianças se responsabilizem? Como esperar que os pais sejam pais se continuam sendo filhos?
Esses pais continuam sendo filhos ao não responsabilizarem-se pelas suas vidas. Ao permitir que seus filhos façam o que bem entendem, não só dentro de casa, mas no espaço público, estão escolhendo o que dá menos trabalho. Sim, porque educar, botar limites, se importar, dá muito trabalho. E exige tempo, gasto de energia, esforço. Amor. O mais fácil é deixar para lá. Ou bater a porta da rua e deixar que a babá – a de seus filhos – se vire. Mas há algo mais.
Me parece que a permissividade com os filhos é uma permissividade consigo mesmo. Se os filhos encarnam o ideal dos pais, se neles estão colocados os desejos e as melhores esperanças dos pais, não seria de esperar que o ideal de pais infantilizados seja o de que os filhos possam tudo? Bem ou mal, ainda que andem pelo mundo como se não tivessem responsabilidade nem por si mesmos nem pelos destinos do planeta, em alguma medida esses adultos precisam lidar com as consequências de seus atos – ou não-atos.
É de se esperar que, para os filhos, desejem, consciente ou inconscientemente, que possam fazer tudo sem nenhuma espécie de retaliação. Aos filhos, tudo deve ser permitido. Algo como: “se para mim não está sendo assim, que pelo menos seja para os meus filhos”. Um ideal tão óbvio como é o desejo que os filhos se formem na universidade para os pais que não puderam estudar ou que o filho tenha casa própria para os pais que viveram a vida inteira de aluguel.
Desde que a infância se tornou um depositário do futuro, os pais desejam que os filhos realizem aquilo que não puderam realizar. Não seria lógico que os pais que se tornaram adultos sem se responsabilizar pela vida – sem sair da infância, portanto – desejem que os filhos possam fazer tudo? Nesse sentido, é ainda mais grave do que parece: ao permitir tudo, esses pais estão fazendo o melhor que podem para o cumprimento de suas mais caras esperanças.
Há muito para pensar. E, por enquanto – ufa! – ainda não inventaram um think coach.
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